domingo, 25 de novembro de 2007

O CRIME DO PADRE AMARO



«Amélia quis logo saber a história; e sentando-se no mocho do piano, embrulhando-se no seu xale:

- Diga, Tio Cegonha, diga!

Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ela morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se frade franciscano...

- Parece que o estou a ver...

- Era bonito?

- Se era! Um rapaz na flor da vida, rico... Um dia veio ter comigo ao órgão: "Olha o que eu fiz", disse-me ele. Era um papel de música. Abria em ré menor. Pôs-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que música! Mas não me lembra o resto!

E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditação em ré menor.

Amélia todo o dia pensou naquela história. De noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade franciscano, na sombra do órgão da Sé de Évora. Via os seus olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira pálida, nos seus hábitos brancos, encostada ás grades negras do mosteiro, sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandálias, enquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava: era um vasto céu negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com hábitos de convento e um ruído inefável de beijos insaciáveis, giravam, levadas por um vento místico; mas desvaneciam-se como névoas, e na vasta escuridão ela via aparecer um grande coração em carne viva, todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caíam dele enchiam o céu duma chuva escarlate19.

Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia tranqüilizou a S. Joaneira com uma simples palavra:

- Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze anos da rapariga. Hão-de-lhe vir amanhã as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se. Temo-la mulher. »



Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.

Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam - ela roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé, o bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava daquela maldita! E era impossível obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua da Misericórdia, pedi-la à mãe, vir à Sé dizer-lhe: "Senhor pároco, case-me com esta mulher", e beijar, sob a proteção da Igreja e do Estado, aqueles braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa de Alegros!...

Abominava então todo o mundo secular - por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na idéia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga - mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?... - E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéia que esse domínio só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens...

Eça de Queiroz
"O Crime do padre Amaro"



Eça de Queiroz (25.11.1845 - 16.08.1900)



"O Crime do padre Amaro" foi o primeiro livro do Eça que eu li. Era adolescente e empolguei-me de tal maneira que o li numa assentada.

Entusiamado com o Eça não descansei enquanto não li quase toda a obra.

No liceu toda a gente odiava o Eça, eu só lhes dizia: "Vocês não gostam porque lêem por obrigação, eu li por prazer".
"Os Maias podem ser a grande obra do Eça mas a minha preferida será sempre "O Crime do Padre Amaro".

Por isso escolhi estes textos para celebrar os 162 anos do escritor.

Imagens: William Bouguereau

10 comentários:

João Roque disse...

Boa!!!!
Eça anda muito esquecido aqui na blogosfera e lembrá-lo é um acto de justiça.
E as fotos até lhe agradariam...
Abraço.

wind disse...

E escolheste muito bem:)
Belas imagens.
beijos

avelaneiraflorida disse...

Amigo Papagueno!!!!!
Imagina, estou a trabalhar , com os meus "besouros" os Quotidianos a partir da Leitura de "OS Maias"...

Tem sido um esforço épico, posso garantir! Ainda "por cima" porque são "obrigados" a lê-lo também para Português...
No entanto, acho que alcancei pequeninas vitórias!!! Já me chegaram alguns temas que parecem ser aliciantes...
Veremos...
Pode ser que eles descubram o enormissimo Eça e a sua tão,actual, e mordaz, crítica social...
Bom,claro que Eu li todo o Eça!!!! Mas eu vivo num reino diferente!!!!
BRIGADOS, por mais este LINDO POST!!!!
BJKS, Amigo!!!!

Abrenúncio disse...

Lembro-me de ter lido alguns livros do Eça: O Conde d'Abranhos, O Mistério da Estrada de Sintra, A Reliquia, As Cidades e as Serras, A Tragédia da Rua das Flores. De todos o que mais me marcou foi a Reliquia. Curiosamente nunca li os Maias, embora fizesse parte do programa do Secundário (li um resumo) e o Crime do Padre Amaro, embora este último tenha conhecimento da história através do filme.
Saudações do Marreta.

Alma Nova ® disse...

Por estranho que pareça, também eu gostei de ler o Eça quando no liceu o "obrigaram" e também todos pensaram que eu não estava "muito bem da cabeça", mas não foi que me impediu de o ler com prazer.
Belo texto de uma das suas mais polémicas obras.
Um abraço.

Maria del Sol disse...

Para mim é sempre um prazer ler a ironia fina de Eça. Gostei muito de "Os Maias" e de "O Crime do Padre Amaro", mas o meu favorito é mesmo "O primo Basílio", um estudo muito profundo sobre o adultério feminino e as ilusões românticas. Já o reli inúmeras vezes e nunca deixo de me admirar :)

Miguel disse...

Eu apenas li os Maias aos soluços ...

Mas eu não sou exemplo para ninguem em termos de leitura ...!

Prefiro a versão cinéfila ...!

Um Boa Semana!
Um abraço da M&M & Cª!

Gi disse...

V~es,mais umacoisaem comum. Sou mais velha que tu, o crime do Padre Amaro , dado o conteúdo tinah sido afastado de circulação era eu garota mas o pai do meu padrasto tinha-o. Capa azul parece que o estou a ver :) pos como o meu padrasto achava que eu,com 12 anos devia era queimar as pestanas comos livros da escola (palavras dele) tudo quanto apanhava a jeito eu lia, jornais, almanaques, e sei lá ... ía desperdiçar um livro ainda por cima que , segundo diziam não era para a minha idade? Claro que não . Foi o meu primeiro livro do Eça também. E agora soube bem (re)ler, á muitooooooooooooo, tempoooooooooooo que não lhe punha a vista em cima.

Obigada por este bocadinho
Beijinhos

Anônimo disse...

Eu gosto da literátura brasileira e estrageira,mesmo tendo só 16 anos.Os livros tem linguagem dificil.Mas quanto mais você mais aprende e aí fica facíl entender.Sobre os dramas é super legal você ler e refletir sobre a cabeça humana!.

Anônimo disse...

Eu gosto da literátura brasileira e estrageira,mesmo tendo só 16 anos.Os livros tem linguagem dificil.Mas quanto mais você mais aprende e aí fica facíl entender.Sobre os dramas é super legal você ler e refletir sobre a cabeça humana!.