sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

AS FAMÍLIAS VERDADEIRAS


Viagens com bolso

As famílias verdadeiras


«Há algo de fascista em ir para a rua lutar não pelos nossos direitos, mas contra os direitos dos outros.
E definitivamente houve algo de fascista na manifestação lisboeta pela “família verdadeira”. PNR? Acção Nacional? Bandeiras negras? Acusar homossexuais da “destruição sistemática da sociedade”? Não soa a nada? Esqueceram-se como Hitler tratou do assunto? E não será isto anticonstitucional? ´

Mas não sei o que é pior, se a organização ter acolhido um punhado de neonazis, se aqueles milhares de pais extremosos com filhos às cavalitas, certamente convencidos de que não estavam a fazer mal a ninguém, deus os livre.
Pois estavam, pois estão. Como lembra aquele poema da Sophia sobre as pessoas sensíveis que não matam galinhas mas comem galinhas.

Impedir que os outros tenham direito ao que nós temos é fazer o bem? Nem toda a gente crê na vida eterna. Muita gente corre contra a morte sabendo que vai perder. Por isso é que Larry David defende no último filme de Woody Allen whatever Works. Tudo o que nos der um pouco de alívio, de confiança, de alegria. E se esse tudo inclui o casamento, que seja para todos.
Pergunto eu então às tão autoproclamadas famílias verdadeiras: quem vos dá o direito de dizer à sociedade que ela seja o que já não é? Quem vos dá o direito de dizer à mãe de um homossexual que a família dela não é verdadeira? Deram-se ao trabalho de pensar no que mães, pais, filhos ou avós de homossexuais sentem ao ler os vossos cartazes? Não vêem a arrogância disto? A violência?
Será fazer o bem achar que vocês são os verdadeiros e os outros são falsos? A família verdadeira é aquela que se mantém à custa de mentira, traição neurose? Não será, antes e finalmente, amor, clareza, coragem? Não serão famílias verdadeiras todas aquelas que querem, e conseguem, estar juntas?

A melhor herança do Novo Testamento é amor, amor e amor. Então dediquem-se a fazer o amor, espalhem todos esses sentimentos cristãos e deixem viver os que querem viver. Olhem para os vossos filhos, para os vossos pais, para as crianças abandonadas, para quem tem fome, frio, medo e está doente. Dêem-lhes todo esse tempo investido na promoção da suposta família verdadeira. E parem de atrapalhar o trânsito com assuntos que não são da vossa conta.
Eu não quero decidir em referendo o que dois adultos legalmente responsáveis fazem um com o outro porque não é da minha conta. E tenho as minhas ideias sobre o que os arruaceiros, gente que humilha, insulta e exclui sob protecção policial, e se propõe consumir dinheiros públicos a decidir ávida dos outros.
Sim, creiam, os homossexuais vão casar e ter filhos, é o futuro. Ninguém discriminado por raça, religião ou orientação sexual, lembram-se? Talvez os vossos filhos vos possam ensinar.»

Alexandra Lucas Coelho
Jornal Público, secção P2. Sexta-feira 26 de Fevereiro de 2010

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O TURISMO DO JARDIM



Em primeiro lugar gostaria de mostrar a minha total homenagem e consideração pelos momentos difíceis que atravessa neste momento o povo madeirense. É portanto com um total sentimento de nojo que ouço nas notícias as declarações do Presidente do Governo Regional da Madeira, um tal de Sr. Alberto João. Num momento de dor e de perda no seio do seu próprio povo este senhor apenas se preocupa com a imagem turística da Ilha no exterior.

Esta é, aliás, à imagem da sua tão adorada Cuba, “um jardim apenas para turista ver”, com uma imagem de pobreza e miséria que se esconde por trás dos hotéis, das praias e dos campos de golfe.

O turismo, será de igual modo, uma das causas que potenciaram esta tragédia, devido à construção desregrada de habitações, estradas e viadutos em locais potencialmente perigosos, numa zona onde já se sabe que a natureza pode ser violenta.

Este texto será publicado em dois blogues diferentes e no meu Facebook.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

domingo, 14 de fevereiro de 2010

AUTOBIOGRAFIA

Recebi por email, achei tão bonito que não resisti em postar.

Rosa Lobato Faria

Rosa Lobato Faria

João Lemos





A escritora, letrista e actriz Rosa Lobato Faria, faleceu muito recentemente, aos 77 anos, depois de uma semana de internamento num hospital privado. Foi colaboradora (dizendo poesias) de David Mourão-Ferreira em programas literários da televisão. Autora, entre outros, dos romances Flor do Sal, A Trança de Inês, Romance de Cordélia, O Prenúncio das Águas, ou mais recentemente A Estrela de Gonçalo Enes (ed. Quasi). Publicamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL há dois anos.

Autobiografia

Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.

Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.

E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).

Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.

Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te, menina, que vais ser escritora.

Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele molhávamos os pés e as almas.

Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.
Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).

Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.

Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.

Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).

Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.

Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.

Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.

Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

QUEM ME QUISER


Quem me Quiser

Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Lobato Faria (1932-2010)
Foto Papagueno