domingo, 29 de junho de 2008

PREGUIÇA


Ontem à noite houve festa e arraial até às tantas. Hoje estou em modo de preguiça.

Hino à Preguiça

Meiga Preguiça, velha amiga minha,
Recebe-me em teus braços,
E para o quente, conchegado leito
Vem dirigir meus passos.


Ou, se te apraz, na rede sonolenta,
À sombra do arvoredo,
Vamos dormir ao som d'água, que jorra
Do próximo rochedo.


Mas vamos perto; à orla solitária
De algum bosque vizinho,
Onde haja relva mole, e onde se chegue
Sempre por bom caminho.


Aí, vendo cair uma por uma
As folhas pelo chão,
Pensaremos conosco: -- são as horas,
Que aos poucos lá se vão. --


Feita esta reflexão sublime e grave
De sã filosofia,
Em desleixada cisma deixaremos
Vogar a fantasia,


Até que ao doce e tépido mormaço
Do brando sol do outono
Em santa paz possamos quietamente
Conciliar o sono.


Para dormir à sesta às garras fujo
Do improbo trabalho,
E venho em teu regaço deleitoso
Buscar doce agasalho.


Caluniam-te muito, amiga minha,
Donzela inofensiva,
Dos pecados mortais te colocando
Na horrenda comitiva.


O que tens de comum com a soberba?...
E nem com a cobiça?...
Tu, que às honras e ao ouro dás as costas,
Lhana e santa Preguiça?


Com a pálida inveja macilenta
Em que é que te assemelhas,
Tu, que, sempre tranqüila, tens as faces
Tão nédias e vermelhas?


Jamais a feroz ira sanguinária
Terás por tua igual,
E é por isso, que aos festins da gula
Não tens ódio mortal.


Com a luxúria sempre dás uns visos,
Porém muito de longe,
Porque também não é do teu programa
Fazer vida de monge.


Quando volves os mal abertos olhos
Em frouxa sonolência,
Que feitiço não tens!... que eflúvios vertes
De mórbida indolência!...


Es discreta e calada como a noute;
És carinhosa e meiga,
Como a luz do poente, que à tardinha
Se esbate pela veiga.


Quando apareces, coroada a fronte
De roxas dormideiras,
Longe espancas cuidados importunos,
E agitações fragueiras;


Emudece do ríspido trabalho
A atroadora lida;
Repousa o corpo, o espírito se acalma,
E corre em paz a vida.


Até dos claustros pelas celas reinas
Em ar de santidade,
E no gordo toutiço te entronizas
De rechonchudo abade.


Quem, senão tu, os sonhos alimenta
Da cândida donzela,
Quando sozinha vago amor delira
Cismando na janela?...


Não é também, ao descair da tarde,
Que o vate nos teus braços
Deixa à vontade a fantasia ardente
Vagar pelos espaços?...


Maldigam-te outros; eu, na minha lira
Mil hinos cantarei
Em honra tua, e ao pé de teus altares
Sempre cochilarei.


Nasceste outrora em plaga americana
À luz de ardente sesta,
Junto de um manso arroio, que corria
À sombra da floresta.


Gentil cabocla de fagueiro rosto,
De índole indolente,
Sem dor te concebeu entre as delícias
De um sonho inconsciente.


E nessa hora as auras nem buliam
Nas ramas do arvoredo,
E o rio a deslizar de vagaroso
Quase que estava quedo.


Calou-se o sabiá, deixando em meio
O canto harmonioso,
E para o ninho junto da consorte
Voou silencioso.


A águia, que, adejando sobre as nuvens,
Dos ares é princesa,
Sentiu frouxas as asas, e do bico
Deixou cair a presa.


De murmurar, manando entre pedrinhas
A fonte se esqueceu,
E nos imóveis cálices das flores
A brisa adormeceu.


Por todo o mundo o manto do repouso
Então se desdobrou,
E até dizem, que o sol naquele dia
Seu giro retardou.


E eu também já vou sentindo agora
A mágica influência
De teu condão; os membros se entorpecem
Em branda sonolência.


Tudo a dormir convida; a mente e o corpo
Nesta hora tão serena
Lânguidos vergam; dos inertes dedos
Sinto cair-me a pena.


Mas ai!... dos braços teus hoje me arranca
Fatal necessidade!...
Preguiça, é tempo de dizer-te adeus,
Ó céus!... com que saudade!

Bernardo Guimarães
poeta brasileiro (1825-1884)

8 comentários:

Anônimo disse...

Imaginei que andasses por lá, e imaginei bem! ;) Abraço, boa semana!

Abrenúncio disse...

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Saudações do Marreta!

P.S.: eu volto!

wind disse...

Excelente Hino à preguiça:)
Beijos

Zé Povinho disse...

E viva a preguiça, ainda que nem sempre possível.
Abraço do Zé

Luís Galego disse...

Porque será que ao ler este post me lembrei de Pessoa. aqui vai:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

avelaneiraflorida disse...

Amigo Papagueno,

e que poema tão, tão a gosto!!!!
E que hoje vem mesmo a "calhar"!!!!!

Bjkas!

papagueno disse...

Arion: E imaginaste muito bem.
Um abraço.

Marreta: Mais uma vez não vou poder ir. Dia 18 não dá mesmo.
Um abraço.

Wind: Ainda continua, e pensar que ainda nem comecei a volta aos blogues deste lado.
Bjs

Zé Povinho: devia ser possível mais vezes não é?
Um abraço.

Luís Galego: Por acaso também me lembrei desse poema, só que não o quis repetir.
Esta preguiça é fisica e mental mas apesar de tudo nunca posso concordar com o Pessoa quando diz: "Ter um livro para ler e não o fazer".
Um abraço.

Avelaneira: É que vem mesmo a calhar.
Bjs

Abrenúncio disse...

Preguiça, é onde me tenho embrulhado nestes últimos dias.
Saudações do Marreta.