sexta-feira, 28 de setembro de 2007

HÁ METAFÍSICA EM NÃO PENSAR EM NADA

Ascension.
Salvador Dali. 1958.


Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica?

Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro

10 comentários:

João Roque disse...

Ao contrário do que se possa pensar, gosto muito de Pessoa ( e quem não gosta)?
Neste poema, ele é sublime, pois começa por uma introspecção e acaba transformando o poema numa belìssima oração.
Parabéns pela escolha, pois seleccionar um poema de "todos os Pessoas" não é fácil, e geralmente exprime um sentir de alma momentâneo; a foto está à altura do texto escollhido.
Abraço, reforçado, e sabes porquê...

avelaneiraflorida disse...

Alberto Caeiro e Dali!!!!!

Um contraponto belissimo, papagueno!!!!

UM BOM DIA, PARA TI!

BJKS

RIC disse...

Gosto do contraste! Caeiro afirmando ser panteísta (sem dizer que sabe o que é o penteísmo...) e Dalí, o «teorizador» do método paranóico-crítico...
Cada um à sua maneira, olha que duas «peças» juntaste aqui!
Um abraço! :-)

Anônimo disse...

Gostar de Fernando Pessoa é um desafio, mas o que é da vida sem desafios!?

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Gi disse...

"Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos."


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... se assim fosse , este podia ser o meu deus.

o deus das pequenas coisas

dos pequenos nadas

um beijo.

Gosto muito desta "pessoa" do Pessoa .

Anônimo disse...

Grande escolha amigo. Um Grande abraço e bom fim de semana

Anônimo disse...

Um dos heterónimos que mais gosto. Boa ilustração.
Beijos
sagitariana
PS:Música da boa:)

Soraia Blás disse...

Virei cá mais vezes com toda a certeza, gostei bastante do teu blog; )

Ema Pires disse...

Imagem de Dali impactante para ilustrar estes magníficos poemas.
Ponito post.
Bjs

Anônimo disse...

E, contudo, tocam-se..inteligente associação.
"Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Nós, como as árvores são árvores
E como os regatos são regatos
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos...
E não nos dará mais nada, porque dar-nos mais seria tirar-nos mais."

O mais difícil é a simplicidade
Sorrisos
:)Ana