quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A SECRETA VIDA DAS IMAGENS

I like America and America likes me", Joseph Beuys

SEGREDO ENTRE JOSEPH BEUYS E EU

contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo animal sacrificado tocamos o homem
cuja vida se desprende do centro da terra
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma cabeça de sangue e de mercúrio escorre
oxidando a vulcânica lâmina da memória

contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo homem tocamos o sacrificado animal
cuja morte se prende à intriga do coração
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma artéria pulsa incandescente e escorre
dos olhos do animal para os olhos do homem

contemplamos
o início secreto da eterna luz e da treva
atentos
à morte do esplêndido universo

Girassóis, Vincent Van Gogh


ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THEO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arles continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

Circulos dentro de um circulo, Kandisnsky

KANDINSKY ESCONDIDO ATRÁS DA TELA

muito antes de ter adoptado formas
rigorosamente geométricas (para fugir à anarquia)
pintei este arco negro ligando duas zonas
da mesma paisagem: ponte escura
por onde -tu que me olhas- podes passar
ao encontro da intensa chama das manhãs

e do outro lado do arco onde o vento e a árvore
se perdem na euforia de suas próprias cores
-escndido atrás da tela- vejo-te
cada vez mais próximo como se avançasses
pela desintegração do átomo ou pelo deslumbramento
dos lumes te acercasses de mim: o olhar envolto
na teia harmoniosa de colorida música

Os Noivos Voadores, Marc Chagall


OS NOIVOS VOADORES DE CHAGALL

como se escrevesse um poema pinto a mulher
que irrompe da plumagem azulínea do galo
por cima das pontes anoiteceu onde flutuam
o bode e os noivos lancei por terras barreiras
entre elementos e leis físicas
para que o meu país se tornasse mais real
mais proximo de mim quando no exílio pouso
os lábios nas cores de avelã ou das nozes
e fico com o sabor delas na boca.

Recordo assim a casa paterna em Vitebsk e os nevões
de s. petersburgo aquela criança no mercado
apanhando moedas atiradas ao tapete e a cabra triste
em equílibrio - bailando - em cima do gargalo da garrafa
os músicos de acordeão e violino sob o clarão da lua
estes noivos que para toda a minha vida esvoaçaram felizes
de pintura em pintura pelos nocturnos céus do país

Monte Saint-Victoire, Paul Cézanne

SAINT-VICTOIRE DEPOIS DA MORTE DE CÉZANNE

no mais remoto isolamento da memória
guardei preciosamente a sombra dos basaltos
luminosos xistos frestas de granito janelas
perto de Saint-Victoire mais cinzenta que nunca
pintava sem cessar pintava
desde o alvorecer até que a noite descia
obrigando a mão e o pensamento a desfalecer

trabalhei sempre a obsessiva luz
mas a velhice aprisionou-me na vertigem
muito longe na idade
continuei a pintar sur motif
parecia-me fazer lentos progressos
quase compreendi os sobrepostos planos
de um mesmo objecto sob a claridade de d'aix

foi em 1906
montado num burro carregado com material
ia por onde o cortante mistral passara
deixando a descoberto o implacável sol
modulava terras pinhais nuvens casas corpos
mas a morte não consentiu que eu executasse
as vislumbradas geométricas paisagens e
comigo se perdeu o segredo o segredo dessa pirâmide
que é Saint-Victoire vibrando
na cegante luminosidade do meio-dia

Anunciação, Fra Angelico


A andorinha e Fra Angelico

a cor faz-se luz
dimana o esquemático desenho candura e
recolhida entre dois arcos está a virgem-ao fundo
a sala adivinha-se vazia-sob a abóbada
onde ínfimos astros cintilam veio o anjo
com o seu esplendor de asas em ouro trazer
o doce recado: hás-de conceber e dar à luz um filho
que reinará eternamente sobre a casa de jacob

angelico estremeceu com a inesperada revelação e
na cela retirado deu vida às celestiais criaturas
mas só ele e a andorinha ouviram o segredo
que deus mandara gabriel anunciar.


Mário Cesariny

CESARINY E O RETRATO ROTATIVO DE GENET

ao lusco-fusco mário
quando a branca égua flutua ali ao príncipe real
as bichas visitam-nos com as suas cabeças ocas
em forma de pêndulo abrem as bocas para mostrar
restos de esperma viperino debaixo das línguas e
com o dedo esticado acusam-nos de traição

sabemos que estamos vivos ou condenados a este corpo
cela provisória do riso onde leonores e chulos
trocam cíclicos olhares de tesão e
ficamos assim parados
sem tempo
o desejo diluindo-se no escuro à espera
que um qualquer varredor da alba anuncie
o funcionamento da forca para a última erecção

lá fora mário
longe da memória lisboa ressona esquecendo
quem perdeu o barco das duas ou se aquele que caminha
será atropelado ao amanhecer ou se o soldado
que falhou o degrau do eléctrico para a ajuda fode
ou ajuda ou não ajuda e se lisboa num vão de escadas
é isto
tão triste mário sobre o tejo um apito

Textos: Al Berto, "A Secreta Vida das Imagens", 1984,85

10 comentários:

Anônimo disse...

Se a recuperação corresponde à beleza e à qualidade do post, então o cuidador do nosso bairro já está em enormíssima forma.
(Porque não escolheu os "noivos voadores" de que fala o poema?)
Um abraço

papagueno disse...

Meu caro 3vairado, tem toda a razão, foi uma falha minha. Já tinha postado essa imagem por aqui e não a quis repetir. Afinal ambas as imagens já são repetidas por isso alterei.
Quanto á recupearação já está mesmo recuperada :)
Um abraço e obrigado.

Anônimo disse...

Apresentas sempre aqui umas coisas muito catitas! Já o disse, e repito: é um espanto como consegues casar textos e imagens! Continua! Abraço!

Abrenúncio disse...

No meio de tanta beleza literária e artistica não sei mesmo o que dizer. Ou então teria tanto que dizer.
Olha, foi do melhor que vi desde que ando por estas lides blogosféricas e está tudo dito.
Saudações do Marreta.

Gi disse...

Magífico Al Berto, magníficos os poemas, as imagens , a selecção.
Absolutamente 5*****

Um beijo grande

*Um Momento* disse...

Bem...Adorei!
As imagens , os textos
Fantástico
Parabéns!

Beijo de noite boa

(*)

avelaneiraflorida disse...

Amigo Papagueno,

VOLTASTE EM FORMA!!!!!! EXCELENTE!!!!
tenho andado com imensas "coisas" para fazer e nem sempre o tempo chega...mas encontrar-te por aqui, foi EXCELENTE!!!
Bjkas, amigo!!!

wind disse...

Fantástico post! Parabéns:)
beijos

ANTONIO DELGADO disse...

Tirando o Frangelico que é do periodo medieval, a postagem é uma excelente colecção de pintura dalguns dos pintores mais representativos do século passado e, com a polémica performance de Beuys e o cayote.Os textos tornam ainda as pintuars mais sugerentes.
bom fim de semana.

António

lady.bug disse...

:)
obrigada pela partilha

beijinhos