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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

DIZEM QUE A PAIXÃO O CONHECEU


dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos.

Al Berto

segunda-feira, 23 de junho de 2008

ACORDAR TARDE


tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto
Música: Jorge Palma, "Norte"(2004)
Imagem: Bruno Silva, Olhares

sexta-feira, 13 de junho de 2008

SANTO ANTÓNIO DOS POETAS

Hoje, dia de Santo António é dia de poetas.
Este post é uma homenagem a tantos poetas populares que nos encantam com as suas inspiradas quadras.

O Dia 13 de Junho é também o dia que fica ligado à vida de três grandes poetas da língua portuguesa:
O anteriormente citado Fernando Pessoa, Al Berto e Eugénio de Andrade.
A estes três senhores um muito obrigado por tanto enriquecerem as nossas vidas.



E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

domingo, 27 de janeiro de 2008

HORTO


homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível
caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos - cantam
a linha do horizonte é uma lâmina
corta os cabelos dos meteoros - corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades
escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios
adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse
no fundo do muito longe ouve-se
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios
prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de um fogo lento - uma sarça
que se acende subitamente por dentro.

Al Berto
"Horto de incêndio", 1996
Imagem: Sauco

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

VEM COMIGO


Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

Iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

Vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

Vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu

Al Berto
Imagem: Siro Anton

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A SECRETA VIDA DAS IMAGENS

I like America and America likes me", Joseph Beuys

SEGREDO ENTRE JOSEPH BEUYS E EU

contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo animal sacrificado tocamos o homem
cuja vida se desprende do centro da terra
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma cabeça de sangue e de mercúrio escorre
oxidando a vulcânica lâmina da memória

contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo homem tocamos o sacrificado animal
cuja morte se prende à intriga do coração
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma artéria pulsa incandescente e escorre
dos olhos do animal para os olhos do homem

contemplamos
o início secreto da eterna luz e da treva
atentos
à morte do esplêndido universo

Girassóis, Vincent Van Gogh


ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THEO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arles continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

Circulos dentro de um circulo, Kandisnsky

KANDINSKY ESCONDIDO ATRÁS DA TELA

muito antes de ter adoptado formas
rigorosamente geométricas (para fugir à anarquia)
pintei este arco negro ligando duas zonas
da mesma paisagem: ponte escura
por onde -tu que me olhas- podes passar
ao encontro da intensa chama das manhãs

e do outro lado do arco onde o vento e a árvore
se perdem na euforia de suas próprias cores
-escndido atrás da tela- vejo-te
cada vez mais próximo como se avançasses
pela desintegração do átomo ou pelo deslumbramento
dos lumes te acercasses de mim: o olhar envolto
na teia harmoniosa de colorida música

Os Noivos Voadores, Marc Chagall


OS NOIVOS VOADORES DE CHAGALL

como se escrevesse um poema pinto a mulher
que irrompe da plumagem azulínea do galo
por cima das pontes anoiteceu onde flutuam
o bode e os noivos lancei por terras barreiras
entre elementos e leis físicas
para que o meu país se tornasse mais real
mais proximo de mim quando no exílio pouso
os lábios nas cores de avelã ou das nozes
e fico com o sabor delas na boca.

Recordo assim a casa paterna em Vitebsk e os nevões
de s. petersburgo aquela criança no mercado
apanhando moedas atiradas ao tapete e a cabra triste
em equílibrio - bailando - em cima do gargalo da garrafa
os músicos de acordeão e violino sob o clarão da lua
estes noivos que para toda a minha vida esvoaçaram felizes
de pintura em pintura pelos nocturnos céus do país

Monte Saint-Victoire, Paul Cézanne

SAINT-VICTOIRE DEPOIS DA MORTE DE CÉZANNE

no mais remoto isolamento da memória
guardei preciosamente a sombra dos basaltos
luminosos xistos frestas de granito janelas
perto de Saint-Victoire mais cinzenta que nunca
pintava sem cessar pintava
desde o alvorecer até que a noite descia
obrigando a mão e o pensamento a desfalecer

trabalhei sempre a obsessiva luz
mas a velhice aprisionou-me na vertigem
muito longe na idade
continuei a pintar sur motif
parecia-me fazer lentos progressos
quase compreendi os sobrepostos planos
de um mesmo objecto sob a claridade de d'aix

foi em 1906
montado num burro carregado com material
ia por onde o cortante mistral passara
deixando a descoberto o implacável sol
modulava terras pinhais nuvens casas corpos
mas a morte não consentiu que eu executasse
as vislumbradas geométricas paisagens e
comigo se perdeu o segredo o segredo dessa pirâmide
que é Saint-Victoire vibrando
na cegante luminosidade do meio-dia

Anunciação, Fra Angelico


A andorinha e Fra Angelico

a cor faz-se luz
dimana o esquemático desenho candura e
recolhida entre dois arcos está a virgem-ao fundo
a sala adivinha-se vazia-sob a abóbada
onde ínfimos astros cintilam veio o anjo
com o seu esplendor de asas em ouro trazer
o doce recado: hás-de conceber e dar à luz um filho
que reinará eternamente sobre a casa de jacob

angelico estremeceu com a inesperada revelação e
na cela retirado deu vida às celestiais criaturas
mas só ele e a andorinha ouviram o segredo
que deus mandara gabriel anunciar.


Mário Cesariny

CESARINY E O RETRATO ROTATIVO DE GENET

ao lusco-fusco mário
quando a branca égua flutua ali ao príncipe real
as bichas visitam-nos com as suas cabeças ocas
em forma de pêndulo abrem as bocas para mostrar
restos de esperma viperino debaixo das línguas e
com o dedo esticado acusam-nos de traição

sabemos que estamos vivos ou condenados a este corpo
cela provisória do riso onde leonores e chulos
trocam cíclicos olhares de tesão e
ficamos assim parados
sem tempo
o desejo diluindo-se no escuro à espera
que um qualquer varredor da alba anuncie
o funcionamento da forca para a última erecção

lá fora mário
longe da memória lisboa ressona esquecendo
quem perdeu o barco das duas ou se aquele que caminha
será atropelado ao amanhecer ou se o soldado
que falhou o degrau do eléctrico para a ajuda fode
ou ajuda ou não ajuda e se lisboa num vão de escadas
é isto
tão triste mário sobre o tejo um apito

Textos: Al Berto, "A Secreta Vida das Imagens", 1984,85

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

INCÊNDIO


Pôr-do-sol em Veneza
Claude Monet



Se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão.

Al Berto
"Horto de Incêndio"

terça-feira, 19 de junho de 2007

MEME LITERÁRIO, AL BERTO


Hoje lá recebi mais um desafio. Desta vez foi a minha amiga Vareira do blog É do Nosso Mar que me desafiou para um Meme Literário. Obrigado Vareira, vou então falar do poeta Al Berto.

Alberto Raposo Pidwell Tavares, (Coimbra, 11 de Janeiro de 1948 — Lisboa, 13 de Junho de 1997), que adoptou o pseudónimo de Al Berto, foi um poeta e editor português.

Nascido no seio de uma família da alta burguesia (origem inglesa por parte da avó paterna). Um ano depois foi para o Alentejo, é em Sines onde passa toda a infância e adolescência até que a familia decide enviá-lo para o estalebecimento de ensino artístico Escola António Arroio, em Lisboa.

A 14 de Abril de 1967 foi estudar pintura para a Bélgica, na École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels (La Cambre), em Bruxelas.

Após concluir o curso, decide abandonar a pintura em 1971 e dedicar-se exclusivamente à escrita. Regressa a Portugal a 17 de Novembro de 1974 e aí escreve o primeiro livro inteiramente na língua portuguesa, À Procura do Vento num Jardim d'Agosto.

O Medo, uma antologia do seu trabalho desde 1974 a 1986, é editado pela primeira vez em 1987. Este veio a tornar-se no trabalho mais importante da sua obra e o seu definitivo testemunho artístico, sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte. Deixou ainda textos incompletos para uma ópera, para um livro de fotografia sobre Portugal e uma «falsa autobiografia», como o próprio autor a intitulava.

Morreu de linfoma.

Fonte: Wikipedia


Amor dos Fogos

.....vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos
.... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir....
.... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras....
.... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...


Al Berto


Escolhi Al Berto, um dos grandes poetas da nossa língua. Além de mestre no uso das palavras foi um lutador e um sofredor. O sofrimento vem espelhado em muitos dos seus poemas, o lutador porque ao longo da sua vida travou algumas batalhas. A última foi a mais dura, uma batalha perdida contra uma doença cruel que o levou do mundo dos vivos com apenas 49 anos.
Tal como nos últimos desafios vou optar por não o reenviar para ninguém. Como de costume fica por aqui livre para quem o quiser levar.
Mais uma vez obrigado à Vareira e um grande beijo para ti.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

AL BERTO, NOS 10 ANOS DA SUA MORTE

Alberto Raposo Pidwell Tavares
11 de janeiro 1948
13 de Junho 1997

«Tocar a luz, qualquer luz, não consegue ressuscitar nada. Sílaba a sílaba tudo continua imóvel. Mesmo quando as palavras se agitam e são voláteis, cortam a respiração – ou quando são vegetais e largam um fio de seiva quente na língua.
Porque é do silêncio poroso do anjo mudo, da fala incandescente do seu olhar que, de quando em quando, surge o poema.»
Al Berto, Incêndio



Vestígios

noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial

Al-Berto
Horto de Incêndio

Imagem: La Luna de Joe Sorren

sábado, 26 de maio de 2007

UM NOME



Vou guardar as tuas mäos na paixäo que tenho por ti,
mas näo te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber.
Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos
amarmo-nos.
Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui.
Pertencia a outra paixäo, e já a esqueci.
Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...

Al Berto