Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
A Secreta Viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada…
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
Tornamo-nos reais, e de Madeira, à proa…
Que figures de lenda! Olhos vagos, perdidos…
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa…
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem…
Aonde iremos ter? – Com frutos e pecado,
Se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa…alheio aos meus sentidos.
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
A eternidade é nossa, em Madeira esculpidos!
Rangia entre nós dois a música da areia
Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste
Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas
Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes
Quis a tua nudez Não quis que te despisses
Paisagem
Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te comtemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno desta praia.
E desejei:
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)
Inscrição sobre as ondas
Mal fora iniciada a secreta viagem,
Um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
Supondo ser a luz que o deus me segredou.
Poemas: David Mourão-Ferreira
Fotografia: National Geographic
5 comentários:
AH! Afinal eles existem... e assim com estas palavras todas a embrulharem-se na paisagem!!!!!
Não digas a mais ninguém....
eu vou para lá pé ante pé e depois mando notícias!!!!
Bjkas!!!
É bom acordar e ler que o amor existe de forma tão intensa e que tem lugares tão belos para ser vivido. Obrigado, Papagueno. Um beijinho, começa bem o teu dia, a tua semana.
Adoro estes poemas de amor de DMF e escolheste imagens belíssimas:)
Beijos
Paraísos sim, os que aqui deixas, de palavras e de imagens. Gosto tanto, tanto!
E sabe bem rel~e-los mesmo conhecendo.É um prazer que se dobra.
(não comento lá em cima , esqueci-me dos óscares ... e até me esquecia que o blogue fazia um ano , quem se lembrou foi alguém nque comentou no post de ontem e fez-se luz á tardinha! Não tenho emenda, datas não são mesmo comigo)
Beijinhos
Magnifica compilação dupla, de belas fotos do NG para inspirados poemas de Mourão Ferreira, o poeta português que mais enalteceu a mulher na sua vertente sexual, na minha sujectiva opinião, claro está.
Postar um comentário